terça-feira, 29 de novembro de 2011

A árvore dos pássaros coloridos - Daniel Marques Ferreira


O senhor João e a senhora Rosa tinham já muita idade. Contudo, mantinham viva e firme a sua grande amizade, que nascera nos dias em que eram ainda crianças.

- Lembras-te, de quando vínhamos para aqui brincar? – perguntou o senhor João à velha amiga, numa tarde em que estavam ambos sentados debaixo daquela árvore, tão antiga que ninguém sabia ao certo os anos que ela tinha.

- Se me lembro! – suspirou a senhora Rosa. – E bem me recordo da tua mania, em subir ali acima, à cata de ninhos de pardais. Malandro, que tu eras!

Agora, que viviam sós – ambos tinham já perdido os seus esposos e os filhos haviam abalado para longe –, que os muitos anos vividos os deixara de cabelos brancos e de passos vagarosos, os dois idosos mantinham aquele hábito: desfiar lembranças sob a sombra generosa daquela árvore. Mal a primavera abria os braços ao tempo gostoso, era vê-los ali, como meninos de outrora a procurarem os seus brinquedos em baús antigos. Sim, chega a altura em que, as recordações são, tal qual brinquedos mágicos!

Certo dia – ou melhor: certa tarde, as suas doces conversas foram interrompidas pelo mau humor do senhor António, vizinho rabugento que vivia mesmo em frente da frondosa árvore.

- Tenho de mandar podá-la! As suas flores causam-me alergia – reclamou o homem, no jeito rezingão de quem tem raiva da vida.

- Podá-la!? – surpreendeu-se a senhora Rosa. – Você deve estar a brincar!

- Brincar coisa nenhuma! Quando vem a primavera, não paro de espirrar por causa das flores dessa árvore – continuou o senhor António.

- Vai tirar-nos esta deliciosa sombra? – perguntou o senhor João, que nem queria acreditar no que estava a ouvir.

- Se querem sombra, arranjem um chapéu – reclamou o mal-humorado, recolhendo de seguida a sua casa e batendo a porta com estrondo.

Os outros, para não desanimarem, comentaram que aquela reclamação, certamente não passava de um desabafo passageiro.

Porém, dias depois e para enorme e triste surpresa de ambos, quando chegaram ali, depararam com a árvore despida de folhas e de flores. Aquela sua velha amiga estava, agora, transformada num tronco choroso, segurando alguns galhos completamente desnudados. Era como se uma tempestade impiedosa tivesse passado por ali, e levado para longe, toda a sua verdura e todo o seu perfume.

- Como conseguiu o senhor António, que alguém fizesse isto à nossa árvore? – perguntou a senhora Rosa, num fio de voz.

- Ora, como conseguiu! Ele é amigo do presidente da junta, e consegue o que quer – respondeu o senhor João, muito ciente do que estava a dizer.

O mal já estava feito, e nada o podia remediar. Por isso, os dois amigos sentaram-se debaixo da árvore despida de folhagem e de flores, e, como ela, mergulharam numa profunda tristeza.

Após uns momentos de silêncio, numa voz tão lastimosa que teria comovido quem a escutasse, a senhora Rosa lamentou:

- Que triste está a nossa árvore! Assim, tão despida e solitária, via morrer de desgosto!

Na altura em que ela dizia isto, o vento, a passear por ali nesse momento, agarrou nestas palavras e levou-as nas suas asas. Depois, lá longe soltou as palavras, que esvoaçaram como pétalas de uma mensagem.

Por um acaso – ou talvez não –, naquele espaço esvoaçavam também um bando de lindos pássaros, muito coloridos. Tão bonitos eram, que, quem olhasse para eles, logo sentia o próprio olhar envolto numa onda de festa. Na verdade, eram a coisa mais linda de se ver. Contudo, ao contrário das pessoas demasiado bonitas que tantas vezes são muito vaidosas, estes pássaros tinham uma generosidade tão grande quanto a sua beleza. Assim, mal escutaram aquela mensagem, e depois de perguntarem ao vento onde vivia a triste e castigada árvore, decidiram em coro:

- Vamos viver nela, e enchê-la de cor e alegria!

Se bem o decidiram, melhor o fizeram!

Tão velozmente quanto as suas asas multicores o permitiam, cruzaram o céu, em busca da sua nova morada.

Quando lá chegaram, o senhor João e a senhora Rosa ainda comentavam o azar da árvore, que conheciam desde que eram crianças.

- Vai levar muito tempo, até que volte a ficar frondosa, verdejante e florida – lamentou homem.

- É! Já não será para os nossos dias! – concordou a amiga.

Nesse instante porém, o chilreio dos pássaros coloridos, o agitar festivo das suas asas lá em cima, sobre a árvore despida, fez com que os dois amigos erguessem a cabeça para o céu e contemplassem aquele milagre.

O velho tronco agitou-se com doçura e abriu os seus galhos como braços que recebem um amigo, pois sentiu que a vida estava de regresso para si.

Agora, os dois idosos podem já não ter sombra para desfrutar, contudo, a festa e a alegria daqueles pássaros coloridos, é quanto basta para os deixar felizes.

O senhor António?! Esse reclama pelo piar das aves, mas nem o presidente da junta consegue fazer nada. Podem agitar paus para enxotar os pássaros, mas eles regressam sempre, horas depois, para encherem de vida aquela árvore secular.

História de D.M.F., a partir de uma ilustração de Andreia Ribeiro

Escritor Daniel Marques Ferreira




segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A fantasia do Abel - Rosa Guedes

Imagem de Filipe Abel Gomes


Para uma festa tropical

Fui convidado

Mas o traje ainda não tinha encontrado

Falei com a minha mãe que me deu permissão

Mas logo me disse:

“Não tenho um tostão!”

Pensei, repensei

Queria muito uma novidade

Que mostrasse toda a minha vaidade!

Enquanto não vinha a imaginação

Peguei num lápis

Comecei a afiá-lo

Com muita calma, pois então!

Uma apara em saia rodada

na mesa poisou

e logo uma em leque se lhe juntou…

Triangulares, redondas, em cone ou

em quadrado…

Eram tantas as cores e formas que eu estava encantado!

Um boné de apara encarnado

Umas luvas negras de mago

papillon de lápis azulado

Nem pareciam aparas, mas sim um fato lindo de brocado!

A mãe adorou! Que bela fantasia!

Como eu me diverti no meu fato – aparas plissadas de magia.!!!


Rosa Guedes,

Junho de 2011


domingo, 12 de junho de 2011

O avião que se ri _ Carlos Vaz

Imagem Andreia Ribeiro

Como psicólogo, pediram-me para prestar alguns serviços de urgência no Aeroporto Francisco Sá Carneiro. Por isso, quando lá cheguei, compreendi que tinha muito trabalho, pois os aviões rapidamente começaram a entrar pela porta do gabinete (provisoriamente instalado numa enorme sala, para o efeito), queixando-se de incríveis maleitas de todos os tipos e feitios. Uns lamentavam-se das vertigens, outros de um medo incompreensível de voar. Havia ainda um avião que sofria do mesmo problema dos que tinham medo de levantar o pé do chão, só que ao revés, ou seja, nunca queria pousar um pé em terra, por esse motivo andava sempre às voltas durante toda a sessão. Foi por entre estes aviões singulares que conheci o avião mais macambúzio da pista, era tão beiçudo que ninguém se atrevia a embarcar nele, com o receio de alguma refrega. Perante tantas queixas, os mecânicos tentaram aparafusar-lhe o humor que faltava, mas tudo o que conseguiram foi uma tal resmunguice dos potentes motores que lhes ficaram a zumbir os tímpanos durante uma semana.

Quando o recebi, não me dirigiu a palavra uma única vez, de início parecia-me tímido, mas depressa compreendi que era simplesmente casmurrice. Decidi então fazê-lo rir um pouco… contei-lhe algumas anedotas sobre helicópteros (é sabido que todos os aviões gostam de ouvir boas anedotas sobre as maluquices dos helicópteros), mas nada, nem um único esboço de sorriso, depois falei-lhe da divertida história da avioneta pitosga que se enganava no aeroporto e aterrava sempre numa leira aqui perto… pois bem, foi exactamente enquanto lhe contava esta história que aconteceu o seguinte… vindo do nada, um avião caiu na outra ponta do meu sofá, atirando-me, imaginem bem, para o alto candeeiro da sala onde fiquei pendurado. Era o avião que não queria aterrar que, já sem combustível, resolvera, por fim, pousar no meu confortável sofá… esquecera-me totalmente dele, lá em cima, longe do meu olhar. Assim, perante aquele cenário tão cómico, o avião antipático soltou uma longa gargalhada, mostrando uma dentição completamente arruinada, muito fanado, com os dentes por lavar e até alguns podres, com um incrível mau-hálito quase impossível de descrever.

Foi assim, desta forma tão estranha, que cheguei à conclusão que o avião resmungão não precisava de um psicólogo, mas antes de um bom dentista. Seguiu o meu conselho, por isso é que hoje, com dentadura nova, é o avião que mais ri em toda a pista, ri das anedotas de helicópteros, das queixas da avioneta e do avião que nunca quer pôr o pé no chão. Ri, ri de tal forma que todos querem nele voar, porque na verdade todos sabem que o riso faz a qualquer um levantar voo.

Se forem um dia ao Aeroporto Internacional Francisco Sá Carneiro, podem perguntar pelo avião que se ri. Se o encontrarem contem-lhe a anedota do helicóptero que não parava de andar à roda, é a sua favorita

Carlos Vaz



terça-feira, 10 de maio de 2011

O Monstro dos Agrafos - Manuela Costa Ribeiro

Imagem de Raúl Gomes


Ao Raúl Gomes

Raúl sonhava todas as noites com o mesmo monstro. Tinha pesadelos. Sentia-o entrar pela janela do quarto e estender os braços na sua direcção. Eram uns braços longos e grossos. Pareciam quase os ramos de uma árvore secular. Ramos presos a um tronco imenso que ficava do lado de fora da janela. Os dedos longos e finos, brancos e frios. Pareciam feitos de neve, mas não se desfaziam embora fossem gelados. Ou era Raúl que gelava de medo e acordava em sobressaltos.

Por isso, todas as noites, quando chegava a hora de deitar, Raúl ia tentando prolongar a sua presença na sala. Enchia a mãe e o pai de perguntas. Tinha sempre mais um exercício para resolver. Eram infindáveis os trabalhos de casa. Nunca se dedicara tanto aos estudos. E nunca tinha sono. Olhava em todas as direcções. O seu olhar atento percorria todas as janelas. E finalmente, quando a mãe insistia:

- Raúl, vá lá, dormir! Anda lá, que te conto uma história. Amanhã tens aulas.

Lá vinha o mesmo pedido:

- Mãe, pai, posso dormir no vosso quarto? Por favor?!

Raúl só pensava em esconder-se nos lençóis da cama dos pais e sentir-se seguro entre os dois. Assim, protegido dos dedos de chumbo do mafarrico, que, sabia, viria assombrá-lo, uma vez mais. E insistia:

- Por favooooor!? Prometo que não dou pontapés! Durmo sem me mexer. Prometo!

- Vá lá, Raúl, então? Tu és um rapaz forte. Não tens medo de um monstrinho qualquer, não é? Vais ver que esta noite ele foi brincar com outro menino!, dizia o pai, tentando desvalorizar a situação, mas visivelmente preocupado.

Todas as noites, os pais deitavam-se com esperança de que estes episódios terminassem a qualquer momento. Todas as noites, porém, a mãe corria em socorro de Raúl, que acordava aos gritos, com os olhos sufocados de lágrimas.

Raúl sonhava repetidamente o mesmo sonho ruim, com o mesmo monstro dos agrafos. Parecia quase um fantasma, terrivelmente grande e desajeitado, vestido de branco, de um branco mais branco que o branco do sabão com que a mãe o lava antes de ir dormir. De um branco mais branco do que a branca espuma que lhe sobra dos lábios quando escova os dentes. Por cima do fato cor de algodão, uma capa do mesmo tom, debruada de agrafos de cinza. Não conseguiu nunca vê-lo por inteiro. Mas pelo tamanho dos dedos, das mãos, dos braços, só podia ser um mostrengo. O monstro dos agrafos. Era assim que lhe chamava. Só lhe vira os olhos uma única vez. De um vermelho-fogo. A espreitar por entre a brancura das vestes.

Sempre que Raúl acordava em altos berros, o gigante desaparecia, por trás de uma nuvem de fumo quase transparente e ninguém dava por nada. Aquele horrendo espantaraúl nunca foi visto por mais ninguém.

Os pais, cada vez mais atentos e preocupados, mesmo querendo acreditar que se tratava de uma fase passageira, começavam a desesperar em busca de explicações e chegaram mesmo a marcar consulta no psicólogo.

Por trás do musgo das árvores mais antigas do Monte, à medida que o tempo ia passando, Agrafítico, no seu esconderijo triste de plantas verdes de grande porte, sentia-se cada vez mais só. A família não havia maneira de conseguir explicar-lhe que há muito não havia qualquer contacto entre humanos e agrafos.

Há séculos que tinham deixado de conviver. Desde aquele dia em que um incêndio destruiu a floresta e obrigou os titãs a deixarem a sua toca escondida por entre a vegetação das montanhas. Há muitos e muitos anos. Tantos que já nenhum homem se lembrava. Tantos que, na comunidade dos Agrafos, nem o Avô Agrafútico, nem a avó Agrafética tinham qualquer memória. Tantos que só o mais velho, Agrafeolítico, se recordava. Por sorte e por mágica, não morreram todos naquele rasto de fogo e de humilhação.

Aí ficaram em suspenso os longos tempos de sã convivência e amizade.

Agrafítico é que não se deixava convencer. E mais: acreditava que só uma aproximação aos humanos seria a solução para que os Agrafos não se extinguissem. Não desaparecessem de vez da face da terra.

Agora que ele e o que restava do seu clã tinham conseguido regressar ao mesmo bosque de antes e tinham recuperado a sua gigantesca caverna, no Monte de Sta. Luzia, tinha de ter confiança. Estava farto ser de filho único e a única criança da aldeia. Zangava-se.

- Mamagráfica, assim nunca vou ter amigos com quem brincar! Só eles é que me restam! Ai! Brrrrrrr…

- Mas, Agrafítico, não vês que…

- É com os mais pequenos da aldeia, sim! Choramingava sem esconder uma grande raiva, tão grande como o seu grande corpo de adamastor.

Com passos apressados de birra, Agrafítico saiu em busca das magias e feitiços do mais velho, Agrafeolítico, que tudo sabe.

Ao chegar à clareira mais luminosa da floresta, onde ao meio-dia em ponto, todos os dias, a luz do sol se desfaz em salpicos de ideias livres, lá estava o mestre sentado em frente a uma grande fogueira sem labaredas e sem fumo. Com os olhos postos no seu caldeirão de poções vazias, mexia e remexia com uma colher de pau de cabo comprido, lenta, muito lenta, e sábia, muito sábia.

E sem que Agrafítico tivesse tido sequer tempo de soltar um ai, já o mais velho, Agrafiolítico, olhos-nos-olhos do gigante petiz, muito pausadamente, como quem soletra palavras sonâmbulas, aconselhou:

- A fé nun-ca per-cas! Ve-jo tu-do no qua-dro bran-co em luz des-fei-ta no es-pe-lho do ou-tro la-do da lu-a.

Depois parou. Concentrado. Levantou a cabeça e projectou os olhos na direcção do Lima. Percorreu, com a sua visão perspicaz e atenta, as águas perdidas no labirinto do estuário. E ali, no rio, fixou o brilho intenso do seu olhar de sabedoria. No exacto lugar onde seivas que escorriam de fontes e nascentes, recolhidas pelo leito doce do rio, alimentavam milhares de vidas minúsculas. No exacto lugar onde o sal das ondas salgadas fertilizava as terras. Ali, observou, com toda a atenção, o céu reflectido na transparência da foz. Como se, ali, estivesse todo o conhecimento. Como se, dali, viesse a resposta para todos os mistérios. E profetizou:

- No-vos a-gra-fos es-tão pa-ra vir! E a-mi-gos. Mui-tos a-mi-gos. A-le-gri-a. Fe-li-ci-da-de. É i-sso que re-ve-la o li-vro sa-gra-do dos a-gra-fos an-ti-gos!

Ah-ah-ah-ah-ah-ah!

Levantou a voz e içou os grandes mastros dos braços, deixando-os cair, de repente.

Crac-crac-crac. Craaaaaaaac. A montanha estremeceu.

Depois sentou-se, cansado. O mais velho, Agrafeolítico, era mesmo muito velho. As barbas brancas arrastavam pelo chão, tão compridas quanto o seu cabelo branco, mais branco do que o branco do gelo preso nos picos mais altos.

Agrafítico, mais certo do que a certeza de estar a fazer a coisa certa, perseguia a sua agrafítica aventura. Muito depois de o sol se pôr e com a cumplicidade da lua cheia que o escondia por entre os seus traços riscados de luz, visitava Raúl. Ficava horas a vê-lo dormir. A observá-lo. A estudar os seus gestos, as suas expressões. Sorria com os sonhos felizes de Raúl e, mesmo sem querer, era o seu pior pesadelo. Embora o que quisesse fosse, afinal, brincar com Raúl e com os seus companheiros, como uma criança da sua idade, apesar do seu grande tamanho. Mal tentava, contudo, entrar pela janela por onde só conseguia espreitar, mal ousava fazer um mimo a Raúl, já este gritava a bons pulmões: mãaaaaaaeeeeeee! e já a mãe corria em seu auxílio.

Agrafítico desaparecia, mais rápido do que uma bola de sabão desfiada no ar. E repetia em eco, de si para consigo, como quem precisa de repetir para acreditar, as palavras que tinha escutado de Agrafeolítico:

- A fé nun-ca per-cas! A fé nun-ca percas! A fé nun-ca per-cas!

Na manhã seguinte, de sol ou de chuva, à hora do recreio, era vê-lo, disfarçado nas nuvens, em delírio com as brincadeiras dos meninos. Imaginava-se a correr, a brincar às escondidas. Até a esconder-se atrás das árvores, no meio dos arbustos e nos campos de flores que rodeavam a escola. E, com a cabeça e com o corpo todo quase a cairem da nuvem onde estava abrigado, acompanhava os passos de Raúl e dos seus amigos a caminho do campo de futebol.

- Será que um dia poderei jogar à bola com eles? Ai como eu gostava! Suspirava Agrafítico nos seus pensamentos mais profundos e irrequietos.

De cada vez que Agrafítico inspirava o ar para deixar sair um suspiro, um repelão de vento empurrava a bola para o campo adversário e Raúl marcava golo. Braços no ar, gritava: Goooolooooooo! Feliz Raúl. Agrafítico sorridente apesar de triste e ansioso, sem nunca desistir de conquistar o coração de Raúl.

Em mais uma das noites longas, daquelas em que não tinha vontade de dormir e ia prolongando os trabalhos de casa pela noite dentro, Raúl ligou o “Magalhães”. Tinha deixado para tarde a pesquisa que o professor pedira para fazer, na internet, sobre o Monte de Santa. Luzia. Uma investigação para o novo projecto. Clicou no Google e escreveu “Monte de Santa Luzia”.

De repente, por entre as pesquisas distraídas, já mais atentas às janelas, leu um título que lhe despertou os sentidos: “monstro dos agrafos”.

O seu corpo tremeu da cabeça aos pés. Ficou arreliado de medo! Mudo! Não podia ser! Olhos arregalados, pregados no ecrã. Sem conseguir reagir. Respirou fundo. Esticou as mãos. Encostou as costas à parte de trás da cadeira. Estático. Apenas conseguiu articular:

- Mãe! Mãaaeeee! O monstro!

Foi mais forte a curiosidade e antes mesmo que a mãe respondesse, os seus dedos, mais rápidos que o seu raciocínio, deram início a uma dança frenética no teclado à procura de mais informações. Clica daqui, clica dali, clica dacolá! Abre uma janela e outra e ainda outra! E eis que lhe aparece a imagem do “Monstro dos Agrafos”. Tal e qual aquela que via nos seus pesadelos sobressaltados. Não podia ser! Boquiaberto, voltava a chamar:

- Mãe! Mãaaeeee! O moooooonstro!

- Filho! Filho! Raúl, tem calma! A mãe está aqui, então? Tentou acalmá-lo a mãe, já com os seus braços em volta do miúdo.

- É ele, mãe. É ele. É verdadeiro. Os monstros dos agrafos existem, mãe. Olha, diz aqui! No Monte de Santa Luzia!

No visor do computador, aparecia a imagem de um monstro branco, todo branco, com uns pêlos maiores, de cor cinzenta, a sobressair da brancura que lhe cobria a pele. Devia medir uns 3 metros de altura, os braços grossos e longos a tocarem o chão. O nariz largo e achatado tapava a boca, que nem parecia nada grande. Os olhos, vermelhos, muitos vivos. E embargados de ternura. Sim. Transmitia afabilidade aquele olhar encarnado. Até tinha um ar simpático aquele monstro dos agrafos. Raúl teve vontade de lhe tocar. De sentir como era. De falar com ele. De lhe perguntar porque lhe povoava os sonhos. Raúl estava surpreendido mas feliz. Afinal o pesadelo não mais seria um pesadelo. A partir daquela noite poderia dormir sem medo. E, no dia seguinte, contaria tudo aos colegas. Mal podia esperar. Descansado de tanta canseira, adormeceu de cansaço.

Já o sono ia profundo e eis que o misterioso espantaraúl que antes lhe sufocava a tranquilidade das noites, chegava agora para a embalar. Desta vez, Raúl deixou-se tocar pelos dedos delgados e frescos como o orvalho da manhã, e sorriu. Virou-se para o outro lado segurando na sua minúscula mão o único dedo de Agrafítico que conseguia agarrar: o mindinho. O pequeno gigante não cabia em si de alegria. Conseguiu espreitar pela janela, aberta de par em par, com os seus olhos de papoilas enormes em dia de primavera, e viu o sorriso estampado no rosto de Raúl, a dormir, sereno e profundo e sem sustos, sem choros, sem gritos. Ali se deixou ficar, vigilante, com os seus brancos dedos, mais brancos que o branco do algodão doce das Festas da Sra. da Agonia, enlaçados nos minúsculos e frágeis dedos de Raúl. E ali, do lado de fora da janela do quarto, acabou por adormecer.

Quando Agrafítico acordou, por fim, já o sol ia alto no céu sem nuvens e completamente a descoberto. Raúl, a mãe, o pai, e até os vizinhos, pasmados, observavam-no com uma daquelas curiosidades de quem vê coisas muito estranhas, coisas de espantar.

Já todos sabiam da antiga convivência tu-cá tu-lá entre humanos e agrafos, em tempos que já lá vão. Todos estavam admirados porque há muito que os monstros tinham sido dados como extintos. Há muito que ninguém falava deles. E todos se mostravam agora animados por saberem que estavam de volta.

Agrafítico e Raúl tornaram-se grandes amigos, os melhores amigos. Agrafítico brinca com as crianças da aldeia e faz parte da equipa de futebol da escola. É guarda-redes e nunca mais a equipa sofreu nenhum golo. A escola Pintor José de Brito está à frente do campeonato inter-escolar. Tem vencido todos os torneios.

Raúl é visita frequente da gruta dos agrafos e já conheceu toda a família. Estava lá no dia em que a mãe Agrafática e o pai Agrafótico anunciaram, diante de todo o grupo, com muita pompa e mais circunstância, que Agrafítico iria ter um irmão.

Na clareira mais luminosa da floresta, onde ao meio-dia em ponto, todos os dias, a luz do sol se desfaz em salpicos de ideias livres, o mais velho, Agrafeolítico, que tudo sabe, guiou o seu olhar de velas soltas pelas águas limpas da enseada. Com os olhos parados no exacto lugar onde o sal das ondas desmaia na espuma de algas e sargaços, com uma voz solene e arrastada, sílaba a sílaba, sentenciou:

- A-gra-fa-úl se-rá o no-me des-ta cri-na-ça! Em ho-me-na-gem à re-no-va-da es-pe-ran-ça que nos trou-xe o no-vo a-mi-go Raúl.

Agrafítico e Raúl ficaram alegres, nas nuvens. É lá que se encontram todos os finais de tarde, quando o sol está quase, quase a partir e a lua quase, quase a dizer boa noite. Ali se sentam, felizes e divertidos, com o olhar pousado na linha do horizonte, onde sol e mar se cruzam.

Despedem-se do astro-rei:

- Adeus Sol, até amanhã! Diz bom dia aos meninos do outro lado da terra.

Saúdam as estrelas do céu reluzente e dão as boas vindas à lua mais nova ou mais cheia, mais crescente ou mais minguante, mas sempre bem-disposta.

- Olá Lua, trazes bons sonhos?

Póvoa de Varzim, Abril de 2011

Manuela Costa Ribeiro

quinta-feira, 17 de março de 2011

O SAPO FELIZ -JOSÉ ANTÓNIO FRANCO

David Parente

Era uma vez um sapo. Gordo e enorme. Diferente!

Quando apareceu na cidade, as pessoas, embasbacadas, não resistiam à tentação de olhar para ele uma, outra e outra vez ainda. Desproporcionado e repugnante, ele era, no entanto, tão alegre e transbordava uma tal confiança que se tornava deslumbrante.

Um dia, sem explicação para o sorriso tranquilo com que o sapo gordo e diferente cumprimentava as pessoas que se cruzavam com ele na rua, um menino interpelou-o:

— Olhe lá, sr. Sapo, como é que consegue ser tão simpático e feliz com esse corpo tão feio e disforme?

— Eu sou diferente porque gosto muito de aparas de lápis que, como se sabe, contêm todas as vitaminas das palavras. Quando eu como aparas de lápis aprendo tanto, tanto, tanto, que a minha memória incha, incha, incha como um balão de brincar; quanto mais aprendo, mais feliz me sinto e quanto mais feliz, mais gosto de aprender e mais aparas de lápis devoro. Um destes dias vou mesmo rebentar, não por saber muito, mas de felicidade por nunca ter desistido de aprender.

Mas não estoirou: o sapo diferente agora rebola. De felicidade!

E tem amigos por toda a cidade. Devoradores, como ele, de aparas de lápis.

Escritor

José António Franco

A FOLHA QUE NÃO CAIU - NUNO JÚDICE

Claúdia Franco

Todos os dias vou à floresta, mas não é todos os dias que se encontra uma folha com patas de lobo. Quando a vi, pareceu-me uma folha igual a todas as folhas que, no outono, caem das árvores e se acumulam na terra. Quando chove, essas folhas transformam-se num tapete castanho que se confunde com a terra e nos permite andar em cima dele como se estivéssemos em casa. Então, lembro-me que a floresta já foi, noutras épocas antigas, a casa do homem. Hoje, porém, é um mundo que nos é estranho. E quando nos contam histórias como a do Capuchinho Vermelho, que encontrou um lobo no meio das árvores quando ia para casa da avó e se demorou a conversar com ele, ou como a história do Polegarzinho que foi abandonado noutra floresta, com os irmãos, e só por ter sido muito esperto se salvou, a ele e aos irmãos, das mãos da bruxa que os queria devorar, ficamos a saber que a floresta não é um sítio simpático para nos perdermos.

Mas quando encontrei esta folha com patas de lobo não foram estas histórias que me vieram à cabeça, mas sim a necessidade de saber por que razão uma folha precisa de se transformar em lobo e vir ter comigo. A primeira questão, no entanto, foi a de saber em que língua poderia falar com uma folha. Não sabemos já a língua da natureza. Quando está vento, e o ar passa por entre as folhas da árvore, ouvimo-las dizer coisas que não entendemos, a que um poeta chamou há muito tempo a linguagem dos símbolos. Mas esta folha com patas de lobo não me parecia ser um símbolo. Podia perguntar-lhe isso mesmo:

- Acaso tu, folha com patas de lobo, és um símbolo?

E ficaria muito admirado ao ouvi-la responder:

- E o que é um símbolo?

O que isto significa é tão simples como isto: afinal, esta folha com patas de lobo fala a mesma língua que eu. E poderia continuar a conversa:

- És uma das folhas que caiu com o outono? Por que não ficaste no chão, como todas as outras folhas que caem com o outono?

E a folha com patas de lobo respondeu:

- Se tivesse ficado no chão, a chuva misturar-me-ia a todas as outras folhas e acabaria por apodrecer com elas, até me transformar nesse húmus que alimenta a terra para que outras árvores nasçam, e nos seus ramos nasçam outras folhas que hão-de cair, no outono, para que tudo se repita.

Percebi que esta folha tinha patas de lobo porque não queria ser igual a todas as outras folhas que caem com o outono. Afinal, esta folha era um símbolo. Ao não querer ser como as outras, queria mostrar a sua diferença. O meu problema, agora, era outro. Ao falar com esta folha com patas de lobo eu estava a pisar todas as folhas que tinham caído, com o outono, e me faziam andar na floresta como se estivesse a pisar um tapete. E se todas essas folhas fossem como aquela folhas com patas de lobo, e também quisessem ser diferentes umas das outras? Imaginei que havia folhas a saírem debaixo dos meus pés, umas com patas de elefante, outras com patas de tigre, outras com patas de todas as raças de cães e de gatos, e ainda folhas como peixes a correrem para dentro da água de todos os ribeiros que passam nas florestas. No fim de tudo, eu estaria rodeado por todas essas folhas com as patas de todos os animais possíveis, para além das folhas que ganhariam asas e iriam levantar voo como os pássaros que também enchem o céu sobre as florestas.

E acabei a pedir à folha com patas de lobo que deixasse de ser um símbolo e voltasse a ser uma folha, como as outras, e caísse no chão, como todas as folhas do outono. A folha com patas de lobo olhou para mim, fingiu que não tinha ouvido nada do que lhe disse, e correu para dentro da floresta, com as suas patas de lobo, deixando-me sozinho a pisar todas as folhas que atapetavam o meu caminho na floresta onde não voltei a encontrar nenhuma outra folha com patas de lobo, mas onde todas as folhas caídas se mexiam como se fossem símbolos da folha que tinha fugido de mim com as suas patas de lobo.

Poeta Nuno Júdice