domingo, 23 de dezembro de 2012

A baleia Big-bang - escritores Ana Figueiredo, Pedro Figueiredo



imagem de Micael Sousa - Baleia Big-bang

A baleia Big-bang



No Oceano Atlântico existe um conjunto de nove ilhas Portuguesas chamado de Arquipélago dos Açores. Estas ilhas de origem vulcânica fazem o encanto de muitas pessoas, habitantes e turistas que aí se deslocam para as conhecer.
A sua constituição rochosa, rodeada de um mar imenso dão a estas ilhas características únicas a nível de paisagem, fauna e flora.
Vários são os barcos de pesca que encostam ao cais carregados de peixe fresquinho para alimentar a população.
Outras vezes são os navios que semanalmente ancoram nos seus portos, cheios de turistas Portugueses e estrangeiros e que percorrem a pé ou de carro as suas ruas curvilíneas devido à grande existência de montes e vales. Muitos destes turistas vão também conhecer o mar e seus animais marinhos em pequenos barcos.
Num lindo dia de verão, chegou ao porto da ilha do Pico um navio cheio de turistas de várias nacionalidades, ingleses, franceses, holandeses, suíços, espanhóis, portugueses, japoneses, e chineses.
No grupo de portugueses encontrava-se a família Silva, uma família constituída por 6 pessoas: O Sr. Manuel, a D. Maria e os seus quatro filhos (um rapaz e três raparigas). Esta família nunca tinha visitado estas ilhas, pelo que todos se encontravam muito entusiasmados.
O filho mais velho deste casal, o Emanuel tem uma simpatia muito grande por animais, principalmente por os animais marinhos, e estava desejoso por fazer uma pequena viagem de barco por aquele imenso mar para observar as baleias.
As filhas mais novas, a Elisabete, a Palmira e a Helena adoram as paisagens na sua vertente mais pura e natural tanto de terra como do mar.
Por todas estas razões, a família Silva resolveu fazer a tão desejada viagem para observação das baleias.
No dia seguinte, bem cedo, a embarcação de nome Santa Rita saiu com alguns turistas rumo a alto mar. Nessa embarcação seguia também a família Silva, todos com os respetivos coletes de salvação.
O mar estava calmo, com uma ligeira ondulação. O dia estava claro e, adivinhava-se um sol radiante.
A nove milhas da costa o barco parou e desligou os motores na expetativa de rapidamente observar as baleias. Os seus passageiros mostravam-se muito curiosos e atentos a qualquer movimento do mar.
Enquanto o tempo ia passando e as baleias tardavam em aparecer, alguns turistas aproveitavam para apreciar uns petiscos, outros, os fumadores, aproveitaram para fumar uns cigarros.
Nesse grupo de fumadores encontrava-se o Sr. Silva. Desde os seus 19 anos que fumava. O seu filho Emanuel falava-lhe muitas vezes sobre os malefícios do cigarro (o cigarro pode provocar doenças graves a nível pulmonar, cardíaco, circulatório, renal e gastrointestinal) mas ele tinha muita dificuldade em deixar de fumar.
Este rapaz, um apaixonado pelo meio aquático, não se cansava de questionar a tripulação. Embora jovem não era completamente inexperiente na área, era aluno do curso de mergulho. – contava ele ao subcomandante da embarcação. Queria conhecer ao pormenor todas as espécies da fauna e flora destas águas, que pesquisava em livros e sítios da internet, durante os seus tempos livres. Uma das suas grandes preocupações consistia em saber se eram respeitadas as leis de conservação e proteção da biodiversidade…

A norte da ilha do Pico vivia uma colónia de baleias, umas adultas e outras jovens. Era um grupo divertido e bem conhecedor do fundo do oceano Atlântico. Já viajaram por outros mares, mas era aqui que queriam permanecer, nestas águas claras e com uma temperatura agradável para a sua espécie, embora apresentasse alguma poluição.
Nesta comunidade existiam treze jovens baleias, muito amigas, andavam sempre em grupo para evitarem o perigo. É que andar sozinho pode tornar-se complicado. Juntas têm mais facilidade em detetar situações perigosas. Os seus pais já lhes contaram histórias de baleias que foram capturadas por seres humanos.

Big-bang é uma jovem baleia deste grupo. O seu nome foi escolhido por sua mãe, logo que esta nasceu, pois o seu nascimento foi tão rápido e estrondoso que pareceu uma explosão, idêntica ao Big-bang que deu origem ao universo.
Perspicaz e curiosa, para esta baleia tudo servia para explorar. Locais longínquos ou próximos, situações simples ou complicadas, tudo servia para descobrir e aprender.

O tempo ia passando e não havia sinal de baleias.
- Temos que ter paciência. Por vezes é demorado. – dizia o comandante
Entretanto os turistas continuavam a comer, a beber e alguns a fumar. Quando terminavam de fumar o seu cigarro, deitavam-no para o mar.
- Pai, não faças isso. Estás a poluir ainda mais o oceano. – disse o Emanuel
Mas, o seu pai e os fumadores da embarcação não deram atenção aos conselhos do Emanuel.
Entretanto, o comandante chamou a atenção de todos para a agitação que se via não muito longe dali.
Todos se calaram. O único ruido que se ouvia era o do mar a ser atravessado por um grupo de baleias.
- Que bonito! – disse Helena num tom muito baixo
E todos ficaram ali a contemplar esta maravilha da natureza.

Esse grupo de baleias era constituído por Big-bang e seus amigos. Curiosos como eram, assim que viram a sombra da embarcação no fundo do mar, resolveram logo investigar o que se estava a passar.
Passaram várias vezes próximo do barco, provocando-lhe alguma agitação.
Entretanto, enquanto percorriam o espaço que envolvia a pequena embarcação, Big-bang encontrou um dos cigarros que foram deitados para o mar. Depois encontrou mais alguns.
-Ei, o que é isto? – perguntou Big-bang
- Não sei. – disse Oma, amiga de Big-bang
- Eu sei. – disse Cola – Eu vi uns humanos com isso na boca e a deitar fumo.  - Então vamos fazer como eles. Deve ser bom. – disse Big-bang
E todas as jovens baleias se reuniram próximo de umas rochas a fumar o resto dos vários cigarros que encontraram no fundo do mar.
Iam passando o cigarro de baleia em baleia, de boca em boca porque não sabiam que com este comportamento podiam adquirir infeções orais e problemas respiratórios.
Uns minutos mais tarde Big-bang começou com uma tosse intensa.
- O que tens Big-bang? – perguntou Oma.
- Não sei. – respondeu esta com uma voz quase impercetivel
Todas as baleias ficaram preocupadas com tal situação. Nunca tinham visto Big-bang naquele estado.
Levaram-na logo para junto dos adultos e, pediram ajuda.
- Vocês foram muito imprudentes. Não deviam apanhar objetos desconhecidos, ainda por cima cheios de fumo e colocarem-nos na boca. – disse Lusca o mais velho
 – Não sabem que os objetos que percorrem várias bocas, sem serem lavados ou desinfetados, podem provocar infeções? Não sabem que os cigarros contribuem para o aparecimento de doenças graves como: infeções respiratórias, cancro do pulmão e outros cancros, doenças cardiovasculares e outras doenças? – continuou o mais velho
Todos ficaram parados, sem saber o que dizer. Estavam muito preocupados com a saúde de Big-bang.

Entretanto, na pequena embarcação a desilusão era visível pois inexplicavelmente deixaram de ver as irrequietas baleias.
- Que se terá passado? – interrogavam-se uns aos outros
Muito pensativo e conhecedor do comportamento destes cetáceos, o Sr. Comandante disse – isto é muito estranho, tenho a certeza que ocorreu algo de grave.
Imediatamente deu ordem a três homens da tripulação que se equipassem para mergulhar. Quem quase desmaiou de felicidade e emoção foi o Emanuel, que foi convidado a ir com a equipa (o subcomandante disfarçadamente tinha obtido a autorização dos pais).
 Ficou deslumbrado com o que viu. No meio daquela imensidão de águas claras, encontravam-se enormes rochas multicolores devido há grande variedade de algas e recifes de coral. Mais á frente viu o que parecia ser um quadro pintado com um número infindável de cores flutuantes, era uma grande variedade de peixes distribuídos por enormes cardumes.
Entretanto descobriram o local onde se encontravam as baleias reunidas. Ficaram a observa-las. Parecia que estavam reunidas numa aula em que Lusca seria o professor.
Quase tudo parecia perfeito exceto a existência de pontas de cigarro nas barbatanas desta baleia.
Perceberam então o que se estava a passar, pois a expressão de Big-bang não deixava dúvidas. Esta baleia estava já com alguns problemas respiratórios.
Subiram então para o barco onde se encontravam os seus companheiros de viagem.
- Então, viram alguma coisa de estranho? – perguntou o comandante
- Vimos. - disse o Emanuel – uma das baleias está com aspeto adoentado. Fomos nós que lhes fizemos mal, pois havia uma grande quantidade de restos de cigarro junto delas.
Todos ficaram tristes com a situação.
A viagem de regresso a casa foi feita quase em silêncio. No entanto o Sr. Silva quebrou-o dizendo. - Aquele foi o último cigarro que fumei.

Já no fundo o mar Big-bang mostrava sinais de franca recuperação. Todas as baleias resolveram festejar tal acontecimento, pois esta é uma baleia jovem e forte.
Fizeram também uma promessa. Nunca mais pegariam em cigarros, pois estes provocam mal-estar e doenças que podem ter consequências graves e irreversíveis.
Estas baleias num dia conseguiram perceber o que muitos Homens em pleno século XXI não conseguem.

Escritores
Ana Paula Figueiredo & Pedro Emanuel Figueiredo

terça-feira, 22 de maio de 2012

Cantiga de uma fada boa sobre o Carlos e Maria - Escritor João Pedro Mésseder

Carlos e Maria - Débora Correia


Cantiga de uma fada boa sobre o Carlos e Maria


A partir de um desenho da Débora Correia


Olha o Carlos e a Maria,
Dois noivos tão aprumados,
Ela de branco vestida,
Ele de negro trajado.

É um sol o coração
Que a Maria traz no peito;
Quanto ao semblante do Carlos
É de um marido a preceito.

O amor que os ilumina
É a raiz das suas vidas
E o sorriso nos seus lábios
Só o ponto de partida.

Viva o Carlos e a Maria,
Os noivos aqui retratados.
Eu que sou uma fada boa
Vou já querê-los bem fadados.


João Pedro Mésseder
Maio, 2012


sexta-feira, 4 de maio de 2012

SASSAI E NIRUMBÉ - escritora Bernadete Costa


Máscara David Parente


Máscara Raúl Gomes


Sassai e Nirumbé eram muito amigos, bom, diremos até mais do que amigos, namoradinhos de fresco, acabadinhos de sair das mãos de artista de Raúl e David, meninos especiais e dotados para as artes. Sendo estes meninos especiais, também o eram porque possuíam poderes mágicos: Raúl encarnava a personagem do fantástico mago Merlim, e David vestia a roupagem do incrível Feiticeiro de Oz, ainda que a residirem no sonho da sua criatividade. Eles elaboraram um casalinho de máscaras muito diferente das restantes que, seguramente, haveriam de formigar pelas ruas da cidade de Viana do Castelo, no dia de carnaval, soalheiro, por certo.
Compete aqui esclarecer que Raúl e David, respectivamente, o mago Merlin e o feiticeiro de Oz nos seus sonhos, já cá se mencionou, fizeram nascer aquelas máscaras com muito amor. Um amor que abrasava o céu, beijava o vento… Lindo, não é?
Assim de imediato as máscaras foram batizadas: ela, Sassai, e ele, Nirumbé.
Obviamente, como grandes mágicos que eram, as suas máscaras ganharam vida própria logo após o seu nascimento, não esquecendo, como já se aperceberam, a parte sentimental, amorosa… Nas mãos dos nossos amigos, diziam as máscaras uma para a outra, “agora que te encontrei não pretendo separar-me de ti”; saiba-se que as máscaras haviam rejeitado, veementemente, serem separadas como pretenderam os seus criadores. Uma por esta rua, outra por aquela…. Dirá quem aqui me lê, “o amor não é fácil para ninguém”, não sejamos pessimistas, pressagio eu.

Retomando o início da nossa história, um casal de máscaras, namoradinhos de fresco, acabara de sair das mãos talentosas de Raúl e David, heróis virtuais em seus sonhos de criatividade e imaginação.

O dia de carnaval despertara quente, por isso, propício à brincadeira e ao desfile pelas ruas da cidade, aliás, como o boletim meteorológico havia previsto e, ainda bem, desta feita, não se enganara. Diremos mais, um dia com cheiro intenso a sol!
No princípio, o casal de máscaras chocou um pouco o grupo das outras, porque todas bem aperaltadas com laços e fitas, bocas de cereja, cabelos de fogo frisados, etc, etc, etc…
Entretanto, o desfile começou. Sassai e Nirumbé riam-se a não poder mais, imaginem, com o medo que pregavam ao susto! E as pessoas, com olhares enviesados como se dissessem, “esquisitas máscaras, diferentes, nada bonitas…”
A certa altura do divertido dia, com aquela grande confusão carnavalesca, Sassai tomba da mão de David. Cai, rola um pouco pelo chão… e perde-se da vista do menino que grita: Sassai, Sassai!…
Nirumbé, por sua vez, amarra-se com firmeza à mão do seu criador, deixando deslizar um olhar triste e lacrimoso pela rua a fervilhar de multidão, nunca mais avistando Sassai.
O feiticeiro de Oz, como quem diz David, ainda pensa recorrer aos seus dotes de mago dos sonhos, mas ele está muito acordado no momento; mira Nirumbé que cabisbaixo deixa morrer o sorriso que se transforma num esgar de dor, uma cicatriz de tristeza a riscar o seu rosto de papelão às cores.
Por sua vez, Merlin, ou seja, Raúl, com uma tristeza de pai que perde o seu filho, acaricia as barbas e o bigode de Nirumbé numa tentativa de lhe fazer voltar o riso à boca bem escancarada, num esforço de o compensar da sua perda.
De repente, uma chuva oriunda dum céu polvilhado de nuvens irrompe das sombras negras como que solidárias com a mágoa daqueles dois.
Raúl fica muito quieto, e enquanto a roupa se encharca olha desalentado Nirumbé que se vai descolorindo, amolecendo, transformando-se em papa amorfa de cartão, papel e tinta.
Pelas pedras da rua, um rio de cor forma um charco de lágrimas, vermelhas.
Raúl e David observam as suas mãos vazias sentindo de novo o sol a querer brincar ao carnaval, e sussurram como mágicos que não são: Sassai Nirumbé…Sassai, Nirumbé…


escritora 
Bernardete Costa, 2012.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O PÁSSARO COLORIDO - Palmira Martins

Imagem Manuel Casimiro

Era uma vez um pássaro. Era de cor cinzenta e tinha um aspecto vulgar. Vivia numa enorme floresta onde havia muitas aves de todas as cores.

O Cinzento, como lhe chamavam os outros, era o mais madrugador de toda a região e também um dos melhores cantores. Além disso era, de entre todos, o que conseguia voar melhor e mais alto.

Todas as manhãs, mal apareciam os primeiros raios de sol, lá se empoleirava ele na árvore mais alta e, com os seus cantares, acordava toda a bicharada. Em seguida subia no céu e voava, voava até quase desaparecer no horizonte.

Os mais preguiçosos, que gostavam de dormir até tarde, ficavam tão zangados por aquele acordar madrugador que o gozavam por causa da sua cor e aspecto vulgar.

– Achas-te muito importante por seres bom cantor? Ainda se tivesses a minha beleza! – dizia-lhe a arara.

– Que aspecto tão vulgar e cor tão estranha! Ainda se tivesses as cores das minhas penas! Já viste alguma ave tão bonita como eu? – comentava o papagaio, empoleirado num arbusto e ainda cheio de sono a meio da manhã.

O pobre pássaro cinzento sabia que eles não tinham razão mas mesmo assim não gostava de os ouvir a troçarem do seu aspecto.

– Não lhes ligues! O que eles gostavam era de cantar e voar como tu e não conseguem! Cada um tem a sua beleza e a tua é o teu bonito canto e a tua rapidez. Não lhes ligues! – dizia-lhe a andorinha sua amiga.

Mas ele queria surpreendê-los e calar as suas vaidades. E até já andava com uma ideia na cabeça. Só estava à espera que a oportunidade surgisse.

E foi então que numa tarde cinzenta, depois de uma chuva forte, os raios de sol apareceram no horizonte e formaram um enorme e belo arco-íris.

O Cinzento encheu o peito de ar e voou, voou em direcção ao arco-íris.

As outras aves, espantadas, viram-no subir, subir no céu até quase desaparecer.

Só uma ave que treinava todas as manhãs desde o nascer ao pôr-do-sol conseguiria voar tão alto! E não é que ele conseguiu mesmo!

Quando finalmente chegou ao arco das sete cores, o pássaro rolou, rodopiou, planou, girou, virou e revirou o corpo.

Imaginem o espanto de todos os animais da floresta quando o viram descer e trazer nas penas todas as cores do arco-íris.

A partir desse dia, o Cinzento passou a chamar-se Colorido e além do mais rápido e melhor cantor é também o pássaro mais bonito da floresta.

Palmira Martins

Fevereiro de 2012

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A MENINA DESPASSARADA - Nuno Higino

Imagem de Catarina Rodrigues

Era uma vez uma menina que tinha o hábito de andar com a cabeça no ar. Por isso, criou uma grande amizade com os pássaros. Eles cantavam e ela respondia cantando. Eles voavam e ela corria, desenhando círculos, como se voasse também. Eles bicavam o azul e ela sorvia o céu com os olhos. Eles desapareciam nos seus esconderijos e ela enfiava-se nos lugares mais recônditos que havia dentro de si.

Um dia, perguntaram-lhe:

- Gostas de ser como os pássaros?

E ela respondeu:

- Gosto!

- Porque gostas de ser como os pássaros?

- Porque os pássaros voam – disse prontamente.

- Mas tu não tens asas para voar.

- Voo com os olhos.

- Mas os olhos não voam.

- Isso é que voam. Voam tão longe como os pássaros.

A menina despassarada não gostava de ser interrogada, sobretudo quando lhe faziam perguntas tontas como estas. Admirava-se por não saberem que os olhos voam. E pensava: ‘como devem ser tristes as pessoas que não sabem que os olhos voam!’

Ficava com pena mas não perdia mais tempo a pensar nisso. Em vez de pensar, erguia a cabeça para o ar e pasmava a olhar os pássaros. A menina despassarada tinha os olhos grandes, muito maiores do que é habitual as pessoas terem. Era de tanta pasmar que os olhos lhe cresciam. Dentro deles cabia muito céu e à sua volta voavam os pássaros. Tinha as pernas compridas, os braços longos e uma blusa cor-de-laranja com flores no lugar dos botões. Ela sabia porque havia flores no lugar dos botões: porque não gostava de andar abotoada. Mas não sabia porque é que a blusa era cor-de-laranja e não vermelha, azul ou cor-de-rosa.

Para quem tem os olhos pequenos, os pássaros são todos iguais e a preto e branco. Quem tem os olhos grandes, como tinha a menina despassarada, vê pássaros de muitas cores. Ela via pássaros vermelhos, verdes, amarelos, roxos e de outras cores para as quais ainda não tinha encontrado nome. Não fazia mal. Dar nomes às coisas é domesticá-las e a menina despassarada queria que os seus amigos pássaros continuassem a voar livremente pelo céu além. Preferia dizer que, para além dos pássaros verdes, vermelhos, amarelos e roxos, havia outros da cor-do-vento, outras da cor-da-manhã, outros da cor-da-alegria, outros da cor-do-burro-quando-foge.

- Bom-dia, menina despassarada! – Saudou alguém que passava.

- Bom-dia – respondeu sem olhar.

- Só tens olhos para os pássaros…

- E já não é pouco – disse, sem desviar o olhar do céu.

- Se continuas assim, um dia os pássaros fazem-te ninho nos olhos.

- Deixá-lo! É melhor fazerem-me ninho nos olhos do que atrás da orelha.

Não ligou a quem a saudou, mas ficou com aquela frase a voar na cabeça: ‘um dia os pássaros ainda te fazem ninho nos olhos’. Olha que boa ideia! Era da maneira que lhe nasceriam pássaros nos olhos, centenas, milhares, milhões de pássaros a sair-lhe dos olhos e a riscarem o céu como se fossem lápis-de-cor sobre um caderno.

E não é que aconteceu mesmo? Quando chegou a primavera, veio um pássaro com um pauzinho no bico e colocou-o num dos olhos. Depois veio novamente e deixou uma ervinha. Veio outra vez e colou o pauzinho e a ervinha com um pouco de lama. Durante vários dias, incansavelmente, o pássaro construiu o seu ninho. Ainda este não tinha acabado, veio outro e fez o mesmo no outro olho. A menina despassarada tinha agora ninhos nos olhos. E, não tardou nada, os ninhos ficaram cheios de ovos. E quando chegou a altura, os ovos partiram e, de dentro deles, começaram a sair pássaros.

A menina amiga dos pássaros estava mais despassarada do que nunca. Havia chilreios em todos os lugares da sua meninice.

- A menina está com cara de quem viu passarinho verde… - disse alguém que andava por ali.

- Vi e incubei – respondeu enquanto mais pássaros lhe caíam dos olhos e se lançavam à aventura do primeiro voo.

- Que segredos não escondem esses olhos grandes…

- Os olhos escondem mais do que mostram, é verdade – anuiu a menina despassarada.

- Deixas-me morar nos teus olhos?

- Não podes, não tens alma de pássaro.

- Não me conheces, como podes dizer isso? – Impacientou-se quem andava por ali.

- As pessoas são previsíveis e só usam os olhos para roubar a inocência das coisas.

- Adeus!

A menina amiga dos pássaros olhou para trás para ver quem falava com ela. Nesse momento, caíram os ninhos que tinha nos olhos. Já não viu ninguém. Começou a passarinhar sem destino. Na próxima primavera, voltarão os pássaros para construir ninhos nos seus olhos.

Janeiro de 2012

Escritor Nuno Higino